Razão


Se do Renascimento aos momentos finais do Iluminismo, os problemas relacionados à ciência, à razão e à teoria do conhecimento haviam constituído o fio condutor do pensamento ocidental, o século XIX caracterizou-se pela extrema variedade de opções e enfoques filosóficos, muitas vezes divergentes tanto em métodos como em objetivos. Essa variedade foi devida principalmente às profundas mudanças intelectuais e sociais da época, entre as quais se destacam a eclosão do romantismo e sua valorização dos elementos irracionais da natureza humana; a acentuação das diferenças sociais como resultado da revolução industrial, o que motivou grande instabilidade política e deu origem a numerosos movimentos filosóficos de reforma social; e em especial a comoção produzida no mundo da ciência com a divulgação das teorias evolucionistas de Darwin.

Nesse clima de agitação ideológica, a filosofia viu desgarrar-se de seus domínios uma série de disciplinas como a sociologia, a psicologia e a antropologia. Abriu-se assim o caminho para um debate sobre a função e a abrangência da filosofia no mundo moderno, que encontraria expressão plena no século seguinte.

Numa perspectiva cronológica esquemática, as primeiras décadas do século XIX foram dominadas pelo idealismo alemão, nascido da herança kantiana e da influência da estética romântica. Assim, ante a impossibilidade de conhecer a "coisa em si", formulada por Kant, pensadores como Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Schelling tentaram superar a dicotomia entre o eu e o não-eu, ou consciência e mundo da natureza, mediante um racionalismo subjetivista que tendia a identificar ambos os pólos e dava primazia à vontade e à moral. O limite extremo desse processo foi o idealismo absoluto de Hegel que, mediante um audacioso sistema dialético, apresentou a totalidade do ser como um progresso infinito do espírito cuja culminação histórica seria o estado.

Frente ao caráter essencialmente especulativo e metafísico do idealismo alemão, no meado do século XIX ganhou força o interesse por questões mais pragmáticas, vinculadas geralmente ao problema da fundamentação das ciências positivas e sociais e inspiradas no empirismo tradicional. Um movimento de importância capital em relação a esse aspecto foi o positivismo, fundado por Auguste Comte que, na teoria dos três estágios de desenvolvimento na história da humanidade, considerou que no último deles, o positivo, o pensamento filosófico deveria limitar-se à descrição dos fenômenos sensíveis e das leis gerais das ciências, entre as quais destacou a sociologia ou "física social".

Estreitamente ligado ao positivismo foi o utilitarismo britânico de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, com marcadas preocupações éticas e sociais, decisivo para o progresso do pensamento liberal. A partir de uma perspectiva política mais radical, Karl Marx reorganizou em termos materialistas a dialética hegeliana como instrumento metodológico para a compreensão da história e afirmou que a filosofia não devia limitar-se a apenas interpretar o mundo, mas contribuir com os conhecimentos teóricos necessários para sua transformação e para o desaparecimento da sociedade de classes. Nas últimas décadas do século XIX amadureceu o pragmatismo americano, com elementos do utilitarismo e interessado nos problemas da verdade e do significado.

Esse conjunto de escolas filosóficas apresenta como traço característico certo espírito de reação frente ao racionalismo hegeliano e uma tendência à exaltação dos valores úteis. Filosofias como o utilitarismo e o pragmatismo mantêm pontos em comum. Outras correntes contemporâneas, especialmente o marxismo, deram origem a uma controvérsia histórica que ainda tinha atualidade nos últimos anos do século XX.

De um prisma alheio aos enfoques anteriores, e em grande medida como reação a eles, o século XIX assistiu ao nascimento de uma série de concepções filosóficas de marcada tendência irracionalista. Seus principais representantes, Søren Kierkegaard, Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, proporcionaram em formatos diferentes uma visão da natureza humana baseada fundamentalmente em seus aspectos emocionais e volitivos. Sua influência, ligada em certos momentos à das teses evolucionistas, constituiu um dos pilares sobre os quais se assentaram diferentes concepções vitalistas e intuicionistas que, ao lado de movimentos ecléticos -- neokantismo, neo-idealismo, espiritualismo católico, metafísica indutiva etc. --, contribuíram para a formação do panorama completo que o pensamento filosófico oferecia na passagem do século XIX para o século XX.

     
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